terça-feira, maio 08, 2007

Lambança


Ali na cozinha, comia farinha,
Sujava o bigode e lambia a tainha
Que coisa mais suja chupar chup-chup,
Mascar o chiclete e beber o xarope

A sopa na boca, o garfo no prato,
O suco da polpa, a uva do cacho.

Se a carne desmancha só dá comilança,
Aumenta minha pança, me pega na dança.

A boca na sopa, o prato e o garfo,
A polpa do suco, a uva sem cacho.

Cachorro quer osso, chicória e cochilo.
Cheirar chocolate chover no ladrilho

Menino quer colo, comida quentinha
Mexido, quitute, quitanda, cantina
Mexido, quitute, quitanda, cantina
.

Luciana Marques

O SIM



"Tudo começou com um sim. Uma molécula disse sim a outra molécula e nasceu a vida. Mas antes da pré-história havia a pré-história da pré-história e havia o nunca e havia o sim."

Tantos sins quantas são as coisas existentes. Há sim para o bem e sim para o mal. E para ser sincera, falamos mais sim para o que não presta. Sim para o que engorda, dá espinha e murcha a gente. Sim para o que definha, empobrece e seca a alma. Um dia, a menina cansada da pobreza em que vivia na região amazônica decidiu entrar em um barco com estrangeiros que lhe pagariam pelo corpo, o barco afundou. Um jovem em Brasília, ao ver um índio sentado no ponto de ônibus, chamou o amigo para atear-lhe fogo, o amigo disse sim. E um austríaco maluco chamou os alemães para eliminar toda uma raça de seres humanos, e eles disseram sim. Outros disseram para entrar com um avião para dentro de um grande prédio a fim de destruí-lo com as pessoas dentro, eles disseram sim.

‘Vamos matar?’ Sim. ‘Vamos roubar?’Sim. ‘Vamos ser egoístas e cuidar apenas de nossas vidas?’ Sim. ‘Vamos trair a quem amamos?’ ‘Vamos fazer guerra?’ Sim. Sim.Sim.
Em algum lugar de nós, esconde uma forte tendência para respondermos afirmativamente ao mal. Posso facilmente apontar os erros da humanidade ao responder tão prontamente ao caos, mas sei que eu mesma já escolhi tantas vezes a insensata resposta. Há uma voz ao pé de nossas orelhas que chama e espera ansiosamente pelo sim mortal de nossas bocas. Em ‘Memórias Póstumas de Brás Cubas’, Machado de Assis resume bem o que acontece quando atendemos a essa voz:

Aí vinham a cobiça que devora, a cólera que inflama, a inveja que baba, e a enxada e a pena, úmidas de suor, e a ambição, a fome, a vaidade, a melancolia, a riqueza, o amor, e todos agitavam o homem, como um chocalho, até destruí-lo, como um farrapo.

Uma leviana brecha em nosso frágil espírito e pimba! Somos agitados como chocalho até nos tornarmos farrapo. Toda suntuosidade da roupa, todo orgulho do poder de escolha, transformado em pano sujo e rasgado, útil somente ao chão, porque disse sim.

Mas, como mencionei, há outro sim. Aquele da molécula que faz gerar vida. Um dia, no meio de profundas trevas, Deus disse ao sol para raiar sobre a terra, e em um eloqüente sim nasceu o dia. Cada canto do mundo foi clareado e o sol empolgou tanto que passou a nascer todos os dias. E ele ficou metido, virou artista, não só nascia, mas fazia estripulias. Tinha dia que nascia sobre o mar, amarelo no azul, subia de mansinho sobre as águas, um contraste com o agitado oceano, e fazia até os anjos chorarem de tanta beleza.

Lembro-me, certa vez, de presenciar uma das estripulias do sol. Às seis da manhã,quando ainda estava escuro, subi a pé uma montanha para ficar a sós com Deus e para ver o nascente. Não imaginava o espetáculo que me aguardava. Sentei-me de frente para um vale e fiquei bisbilhotando o sol. Ele começou tímido. No meio da escuridão do vale, percebi um pequeno feixe de luz. O sol veio surgindo por detrás das montanhas, como eu esperava. Mas, de repente tudo ficou novamente escuro, pois uma nuvem cobrira o astro. Tristeza. Até que, para o raiar da minha alegria, o sol, que brincava de artista, abriu frestas nas nuvens e deixou que seus raios saíssem desordenadamente. Luz na escuridão. O lugar não ficou completamente claro, o que se via eram esses feixes de luz, contrastando com a Terra e o céu anoitecidos. Lindo! Uma das mais belas declarações de amor. Nesse dia, o meu coração incrédulo foi enternecido. Todos os meus medos deram lugar a uma profunda confiança no poder e bondade de Deus. Tudo porque a criação disse sim ao criador. “A beleza do mundo”, segundo Simone Weil, “é o carinhoso sorriso de Cristo para nós, mostrado através da matéria.” Nesse mundo desfigurado, raramente compreendemos isso e deixamos de aproveitar do amor de Deus escrito no universo.

Também vi a lua cheia invadindo a cidade, os peixes na água transparente da cachoeira,o canto dos pássaros, as cascatas constantes que batem nas pedras, a suave música do riacho e a brisa da manhã refrescando meu rosto. Todas essas maravilhas suavizaram minha alma e deram sabor à monotonia dos dias. Passei a entender que há também uma outra voz, aquela mesma que pediu ao sol para iluminar os dias e que hoje comanda o bem aos nossos ouvidos. Toda natureza diz SIM a essa voz e tem-se o espetáculo. Os homens são os únicos que podem escolher se querem o sim ou o não. Mas essa voz anseia pelo sim de nossas bocas e por alguma sombra de sabedoria em nós. Porque a voz de Deus quer ressoar em todos os detalhes da nossa existência e nos fazer amanhecer como o sol. O mesmo espetáculo feito com a natureza deve ser feito em cada um dos seres humanos. E assim dar vida a outros corações. Esse é o resultado do sim dado à voz do criador e, por isso, Ele clama: “Dêem ouvidos e venham a mim;ouçam-me para que sua alma viva.”(Is.55:3).

Ah, e não há somente o sim para os entes invisíveis, os seres espirituais. Podemos dizer sim às pessoas, mesmo que sejam tão carnais e mortais como nós. Ou melhor,por serem tão carnais e mortais como nós. Daí nascem as grandes amizades e os amores, pois “não há amor possível sem a oportunidade dos sujeitos”.

Não é preciso um trepidar forte no peito para que haja amor, é necessário somente que os indivíduos se deixem. Que não desviem o olhar por vergonha ou medo, que o prazer da busca pelo outro não se acabe com as descobertas das falhas, que a paciência se sobreponha à ansiedade e que a bondade nunca cesse. Para que haja amizade e amor é preciso muitos sins.

Quem sabe o que acontecerá daqui para frente?
Não importa! O importante é que nos deixemos, que não temamos o futuro e que não nos desviemos da oportunidade de fazermos o bem um ao outro. Talvez haja dias difíceis, mas podemos suavizar a existência um do outro como um dia fez o sol e a lua comigo.
Hoje é um dia especial. O dia do sim. Não o sim definitivo, mas o sim inicial.
FELIZ DIA DO SIM!



Luciana Dutra Marques